terça-feira, 19 de janeiro de 2010

AINDA O HAITI

Texto Publicado também na Zero Hora de 17 de janeiro de 2010

N° 16218


Professor Seitenfus relata situação de Porto Príncipe pós terremoto



NA URGÊNCIA E PRECARIEDADE

Cheguei a Porto Príncipe na madrugada de sexta-feira. O edifício onde residi por um ano desabou completamente.

Perdi grande parte dos vizinhos e a totalidade de meus objetos pessoais. Tivesse eu adiado minhas férias por cinco dias, estaria também sob aqueles escombros. Trago comigo apenas a mochila que veio do Brasil, com alguma roupa e três cachimbos. Durmo no acampamento das Nações Unidas.

Busco notícias dos cerca de cem funcionários que se encontram a serviço da Organização dos Estados Americanos no Haiti, dos muitos amigos universitários, diplomatas, políticos e militares. A maior parte de meus interlocutores diários faleceu.



Entre as incontáveis preocupações que me assaltam hoje, sublinho a relação entre a natureza e a obra humana. Todo terremoto de tal escala causa danos de monta. Porém, se a catástrofe no Haiti alcançou tamanha amplitude, especialmente se centenas ou milhares de pessoas seguem morrendo por falta de socorro, isto se deve à inexistência prévia de um Estado proficiente em saúde pública, habitação e trabalho. A cooperação sul-americana no Haiti, extraordinário avanço da política externa da região, estava buscando exatamente forjar os meios para superar os limites de uma missão de paz tradicional, beneficiando a população de modo estrutural e permanente com variados projetos, inclusive de agricultura familiar e saneamento básico.



O Haiti vive na urgência e na precariedade desde muito antes da tragédia do presente. Trata-se de um Estado débil, dependente da ajuda internacional. O território foi particularmente castigado por catástrofes naturais. Porém, o atraso no desenvolvimento do Haiti deve-se também a outros fatores, entre os quais destacam-se as ditaduras cruéis que produziram uma cultura política de privilégios e violência. Durante a ditadura da família Duvalier, sob a batuta dos famosos Papa e Baby Doc, entre as décadas de 1950 e 1980, o Haiti mergulhou na pobreza e na corrupção. O legado autoritário repercute em todas as dimensões da vida nacional.



Por tudo isso, o Brasil, em particular, deve orgulhar-se do trabalho lá realizado e persistir na ideia de trocar o mero (e sem fim) assistencialismo, ou a obsessão securitária, pela cooperação profunda, capaz de gerar autonomia. Os desafios da reconstrução são imensos, e apenas uma aliança entre os países das Américas será capaz de enfrentá-los. Nela, o Brasil deve manter e consolidar seu protagonismo. Eis um assunto de Estado, e não de governo. Os homens e as instituições se deixam conhecer plenamente no modo como reagem aos grandes traumas gravados pela História. O horror ora vivido pelo Haiti é um deles.



* Gaúcho, representante especial do secretário-geral da OEA em Porto Príncipe



RICARDO SEITENFUS*

Nenhum comentário:

Postar um comentário